domingo, 6 de julho de 2008

Você: criança-adulta – Parte II


Durante a noite um homem se põe a reclamar da situação conjugal e passa a refletir sozinho na escuridão do quarto:

- Amargurado a cada amanhecer, disputo a cama como se fosse território inimigo, e não existe nada que faça com que as cobertas sejam menos numerosas e o calor humano ponha fim nas longas noites de frio e só existe cansaço até no ouvir afagado da respiração alheia. Enfim, sós. Abandonados numa ilha limitada, onde o grande prazer individual passou a ser os constantes erros e provocações que as virtudes cometem numa encenação parecida com monólogos da idade média. Só que num jogo esfarrapado e de regras atuais envolvendo falsas intenções ideológicas e sentimentos mal representados, papel na broadway, uma utopia, um delírio em plena beira á mar. O sol, é o sol meu caro, é quem desfigura a superfície até esfarelar teu ego, cobrindo a realidade de meras ilusões e músicas que fluem como lembranças, na memória do meu corpo e na memória afetiva que me trazem a tona centenas de lembranças e novas cicatrizes.
E lhe parece surreal? Não pude conter essa pergunta. Ás vezes a realidade parece tão irreal que até no faz perder o chão e a razão. Tem gente que precisa de pílulas pra escapar da realidade e dormir. E vemos coisas tão significativas e com pouco de senso podemos considerar insignificantes também. Os mitos dizem muito sobre o que não podemos explicar e confortam supostas inquietações no ser. E neste caso não poderia ser diferente, levando em conta essas considerações míticas: o amor, um grande mito!

Finalmente o sono chega como furacão arrebatando os pensamentos ligeiramente. Num campo, o sol irradiante e o canto dos pássaros acabam por despertar o Homem angustiado com sua situação conjugal. Jogado sobre a cama num verde que cobre todos os longos montes ao redor, a voz de criança surge dizendo:

- Criança-adulta que se deita na grama feito ingênuo, despreocupado com os cabelos grisalhos, já despenteados, vivendo a realidade que sempre sonhou e se penteou e buscou e conquistou na primeira oportunidade.

O Homem parece não entender nada, e enquanto acorda aos poucos, a criança continua a falar alternando o tom da voz:

- Isso sim é considerável, não reprimindo os desejos de criança, já que somos adultos pequenos, ao menos deixar essa criança na autonomia de te guiar. Deixe que se constitua dentro de você o partido dos sonhos, e que se petrificando concretize a mais sólida fortaleza. Que mobilize suas aptidões e faça-o sorrir feito um palhaço bobo. Um homem bobo. Uma criança-adulta. Afinal essa criança olha no espelho e se vê no mundo adulto; muitos se perdem em fragmentos abrindo as cortinas pro adulto mesquinho, o novo velho adulto, que inverte tudo, e se veste por fora feito criança, e por dentro as vestes pesadas de adulto. Coroa á ele! Pois há muito tempo ele não sonha ao dormir, preocupado com sua vida adulta, deita-se e dorme com os olhos abertos. Agora a agonia deste “ser adulto” mortifica toda esperança que sua criança depositava no peito.

O Homem sem dizer nenhuma palavra apenas contorce-se na cama e começa a vestir uma camisa de força:

- É tarde demais, muito tarde!

Repete murmurando baixo, ao sentar na cama novamente adormece, repetindo até que o sono volta como feitiço. Despertando furiosamente, o homem acorda assustado gritando como se acordasse de um pesadelo, na busca frenética de erguer os braços percebeu que continuava com a camisa de força:

- Então lentamente reponho a respiração serenamente e me conformo feito cão com restos de comida.